Estávamos em pleno Dezembro.
Pedro tinha partido com o seu
rebanho há já alguns dias, escalando as montanhas perto da casa onde vivia.
Alegremente cantava, ao mesmo tempo que ia chamando algumas das suas ovelhas
que manhosamente se afastavam ou ficavam para trás. Gostava deste ar liberto
como livre era a sua alma de 15 anos. Na sua velha sacola de pano remendado,
pendurada a tiracolo, levava alguma comida enlatada, queijo seco e pão duro.
Pelo caminho mordiscava alguns frutos selvagens que conhecia e que o ajudavam a
mitigar a fome, mas também levava o seu "Livro dos Sonhos", onde
escrevia o seu dia a dia, o que lhe abrasava a alma e o que pretendia ser quando
fosse grande. A escola tivera que esperar alguns dias, pois era importante para
a sua família que nesta altura do ano o gado se alimentasse bem, para depois mais
tarde nas noites cada vez mais invernosas, poderem fazer o seu tão afamado queijo
que venderiam na feira e em algumas mercearias e que lhes renderia o bastante
para que os seus pais e irmãos não morressem de fome durante o ano.
Sofia era uma menina de cidade
que fora viver com os avós para a aldeia montanhosa. A separação de seus pais
fora conflituosa e ela sofrera tanto que um dia gritara na algazarra da
discussão, que queria paz e se ia embora e que por isso ia viver com os seus
avós. No dia seguinte pegara nas suas economias que eram abundantes e partira
sem olhar para trás deixando naquele quarto luxuoso as memórias da sua infância
de 14 anos.
Na escola da aldeia conhecera
Pedro e mais amigos e amigas, que a princípio desconfiavam dela pelos seus
ricos vestidos, pelos seus longos cabelos castanhos encaracolados sempre bem
escovados e limpos, pelo seu rosto trigueiro e pelos seus magníficos olhos
verdes. Mas depressa se deram conta que a sua alma era generosa, tentando
ajudar sempre o próximo, explicando nas suas horas livres problemas de
matemática e outras matérias onde era barra.
Todavia o seu coração
alvoraçava-se sempre que pensava no seu muito amigo Pedro. Gostava dele porque este
era sensível, porque estava sempre pronto para a acompanhar sobretudo nestes
dias onde a noite caia mais cedo e a sombras gemiam com o soprar do vento.
Gostava do seu eterno sorriso, gostava dos poemas que ele escrevia, do seu
rosto energético e da sua força de vontade e de aprender.
Davam grandes caminhadas aos
domingos falando dos seus sonhos e do seu futuro do que iriam fazer quando o
seu crescer decidisse que eram horas de viverem uma nova experiencia de vida.
Ela queria ser médica e por isso aplicava-se em estudos muito para alem das
matérias do liceu e lá ia compreendendo o que era ser médica; a dedicação
necessária, a vontade de ajuda e de um dia poder dizer á sua alma, que a sua
vida valera a pena ser vivida.
Pedro tinha-lhe confessado que
queria ser escritor e poeta pois estava-lhe no sangue e também ensinar,
sobretudo a sua língua mãe.
O tempo voara e estavam em
Dezembro e tinham chegado as férias de Natal, mas o seu coraçãozinho ficara
perdido, quando vira Pedro com seu cajado começar a subir o trilho que o
levaria até á alta montanha onde ficaria até á véspera de Natal.
No seu cantinho especial, no cimo
de uma laranjeira, chorara lágrimas malucas de tristeza e saudade, sem saber
bem porquê.
O sentimento de vazio alimentava
a sua alma, fazendo-a gemer e estremecer de dor e dava-lhe um ar de nostalgia.
E ali ficava longas horas olhando a montanha que devorara o seu
"amor". Amor? Murmurara baixinho, era isso que a consumia, era esse
ardor que ardia sem se ver? Então a alegria brilhou nas pérolas que saiam dos
seus olhitos, transformando o seu rosto num imenso sorriso. Amor! Era isso que
sentia, bem encaixado lá dentro nas profundezas da sua alma.
Entretanto os dias na montanha
tinham-se passado com demasiada lentidão e Pedro sentia que uma parte dele
tinha ficado lá em baixo. Sim, tinha desde há muito a noção de que gostava de
Sofia e que a sua vida e os seus sonhos passavam por uma vida rumada em
conjunto, mas o seu olhar entristecia-se ao lembrar-se que ela era uma menina
de cidade e que talvez nunca se interessasse por ele, pobre e como futuro
somente trabalho, pulso e vontade, para ser mais do que poderia ser.
Amanhã seria véspera de Natal e
ele desceria a montanha para se juntar á sua família e á volta da lareira cantarem
e cearem a parca comida que conseguiriam arranjar, mas o que interessava era
mesmo a alegria e o amor que sentiam uns pelos outros. Essa era a grande prenda
de Natal que todos os anos ofereciam uns aos outros.
Sofia por seu lado andava
animadíssima, era a hora de chegar o seu "amor". Os seus avós estavam
estupefactos pela mudança radical do seu temperamento. Já andavam intrigados
pela sua transparecida tristeza que quebrava os seus corações pensando que
seria por causa dos seus pais, mas agora ao verem-na assim interrogavam-se
sobre o que se passaria naquela linda cabecinha.
Nessa noite o céu mudara
radicalmente. Do azul que brilhara durante o dia ficara apenas uns salpicos
entre as abertas das nuvens que corriam cada vez mais depressa, cada vez mais
negras até que da escuridão começaram a cair pétalas brancas como a neve, cada
vez mais forte ao mesmo tempo que o vento uivava o seu desconforto e danado
vergava as árvores seculares.
Cá em baixo Sofia sentira a
mudança e com apreensão olhara para esse alto, agora envolvido pelo manto de
nevoeiro cada vez mais escuro e espesso.
No seu olhar a decisão estava
tomada. Não pensou duas vezes. Conhecia a montanha por a ter percorrido vezes
sem conta com o seu amigo Pedro e partiria de imediato ao seu encontro para o
ajudar a voltar. Assim o pensou assim o fez. Pegou na sua mochila, meteu a sua
lanterna, fósforos, comida, sacos cama e a sua pequena tenda. A parte mais
difícil era convencer os avós a deixarem-na partir pois era noite de consoada.
A sua alma sangrava dividida entre o seu amor por Pedro e o seu amor pelos
avós. Por isso resolveu usar a sinceridade e a determinação contando a sua
resolução e os motivos. Os avós estavam indecisos em a deixarem partir, mas
perante tamanha vontade e por gostarem de Pedro que conheciam desde sempre e no
qual tinham a maior confiança, as suas falas foram-se murchando até que só
restou darem-lhe alguns conselhos e beijarem-na e com voz sofrida e sufocada
pela emoção desejarem que a sua viagem tivesse volta. Antes de sair a sua avó prendou-a com comida, e alguns
doces e todo o seu melhor bolo de chocolate, dizendo que era para terem uma
noite melhor.
Rapidamente Sofia foi subindo a
montanha animada com a sofreguidão de ver Pedro. Na sua mão para além da
lanterna levava um apito para assinalar a Pedro a sua chegada. Meses antes
tinham combinado que esse seria o sinal de que necessitavam um do outro.
Debaixo de uma grande pedra
saliente cavada na penedia, Pedro fizera a sua fogueira do costume e juntara o
seu rebanho em redor e assim se aquecia do frio que varria agora atrás do
vento. A neve amontoava-se por todo o lado impossibilitando qualquer tipo de
descida. Se a neve não parasse teria que passar ali pelo menos mais alguns dias
quase sem comida e pela primeira vez em anos perderia a parca ceia de Natal.
Pedro cantava baixinho a sua
melodia preferida de Natal, para afastar a sua tristeza, quando o silêncio foi
invadido e cortado por um longo som de apito. So fi a...? Como poderia ser?
Apressado retirou da sua sacola o seu apito e começou a soprá-lo com toda a sua
força para que com o som a guiasse até si. Já começava a ver, primeiramente a
luz débil e tremelicante de uma lanterna, tornando-se cada vez mais forte com a
proximidade, trazendo por detrás o sorriso de Sofia.
Por fim correu para ela abraçando-a, não querendo acreditar
no que via.
Arrastou-a rapidamente para o
calor da fogueira ficando um enfrente ao outro. Sofia sentia-se inquieta. Seria
que ele perceberia o que lhe consumia o coração? Seria que sentiria o mesmo, ou
apenas a amizade como até ali? Pedro olhava de soslaio aquele rosto mágico onde
tudo estava escrito e onde ele podia ler como livro aberto, e por isso notou e
sentiu a diferença de atitude que andava no ar. Ficou apreensivo. Porque seria?
De repente as suas vozes falaram
ao mesmo tempo e eles deliraram e rebolaram em risos de nervosa histeria. Por
fim lá se acalmaram e contaram as novidades um ao outro deixando de fora o que
lhes moía o coração. Era chegada a hora da consoada e Sofia compenetrada fez o
seu papel de mulher estendendo uma toalha de quadradinhos vermelhos, naquele
chão semi aquecido e dispusera em redor a comida e guloseimas que trouxera.
Pedro montava a pequena tenda que
lhes daria um maior conforto quando o sono viesse cobrar e os sonhos os
envolvessem num tempo de paz.
Foram comendo num mastigar
confuso como as suas almas e por um momento seus olhares se tocaram sem
disfarces sem medos com perguntas vorazes que queriam saltar e não saiam.
Pedro ficou pensativo dando-lhe a
sua mão calejada de tanto trabalho e puxou-a para ele com toda a ternura. Sofia
sentiu-se voar encostando de mansinho a sua cabeça naquele peito musculado e
seguro. Assim passaram algum tempo e as ideias iam tomando forros de querer e
decisão. Pedro quebrou esse silêncio e por entre a cantiga do vento, da dança
dos flocos de neve e das árvores que os rodeavam como juízes, ele contou-lhe
tudo o que sentia desde o primeiro dia em que a vira chegar á aldeia em cima do
feno na carroça do avo dela.
Sofia encarou-o de frente com pequenas gotas que corriam
apenas, daqueles olhos verdes e pingavam em sons de felicidade.
"Sim, também eu te amo" disse ela e quero que a
minha vida seja a tua e que os nossos rumos alcancem os sonhos e que estes se
concretizem neste nosso amor.
Pedro entretanto disse-lhe que
era pobre e só tinha mesmo para lhe dar o seu amor, a vontade de lutar e
aprender, até que um dia pudesse ser alguém na vida e lhe pudesse proporcionar
todo o conforto de um lar.
"Isso não interessa"
respondeu-lhe Sofia, eu amo-te e a minha vida será para sempre a tua e juntos
ficaremos, acredita amor...
Abraçaram-se comovidos em murmúrios de carinho...
Olha Sofia! Hoje é véspera de
Natal e eu não tenho aqui nada para te dar a não seu o aconchego do meu amor.
Pois eu tenho algo para ti!
Agarrou com ternura o seu rosto e lentamente os seus lábios tocaram-se e
entraram num imenso sonho...
O vento que sacudia, a neve que
caia fria e as árvores altaneiras que se vergavam, foram esquecidas e naquelas
mentes a alegria jorrava em sentimentos que se uniam e fundiam numa só alma.
Era agora tempo de recolherem á tenda montada.
Entraram num outro mundo, onde
agora o Natal era Amor de verdade e as suas tristezas, duvidas e angústias
foram levadas pelas nuvens plúmbeas que rapidamente se afastavam.
No ar parado agora, ficava o sabor da magia de uma Noite de
Natal.
Jorge d'Alte (2009)
Jorge d'Alte (2009)
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